quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Como se fez a "Árvore do Amor"?

Há umas semanas atrás fomos desafiados pelo Hotel Intercontinental Lisboa para criar uma árvore de Natal original. Este convite foi endereçado a artistas de várias áreas criativas(Ana Calheiros e Menezes, Carla Matos, Conceição Vasco Costa, Fernanda Lamelas, Maria João Bahia, Tim Madeira, Sofia Albuquerque e Teresa Ribeiro). Confesso que a nossa primeira opção foi declinar amavelmente o convite - o cansaço, a confluência de uma série de diferentes projectos num mesmo espaço de tempo e a sensatez assim nos sussurraram - mas rapidamente mudámos de opinião, quando, após um brainstorming familiar, um momento de inspiração nos fez unir duas ideias distintas numa só peça única, surpreendente e especial: Por um lado, um candeeiro alto em forma de edifício - há muito ensaiado por mim em esboços (imagens 1 e 2), numa ilustração que entretanto embeleza as paredes da casa de uma grande amiga (imagem 3), numa casa-candeeiro, de dimensões muito menores, que ofereci a um grande amigo (imagem 4) e em muitas pequenas casas que a Natalina foi fazendo ao longo dos anos, também em papel maché. Por outro lado, uma árvore de Natal, o grande objectivo deste desafio.

A Técnica é apenas uma parte da equação da Arte e da Criatividade, mas é também a parte que mais facilmente se transmite de forma simples, clara e objectiva. As outras duas, tal como um músculo, precisam de ser exercitadas sob pena de atrofiarem. Assim sendo, este post que agora publico procura dar algumas indicações a quem queira encetar uma tarefa destas, e criar a sua própria arquitectura em papel maché, ou até outra coisa qualquer. Desde que exista um esqueleto que estruture a peça, tudo é possível fazer em papel maché. Existem algumas diferentes abordagens a esta técnica, mas a diferença maior reside no facto de desfazermos previamente os pedaços de papel em cola branca até formar uma pasta de papel, ou então utilizar directamente os pedaços de papel sobre a estrutura a cobrir, colando-os e ensopando-os com cola branca. No nosso caso, preferimos a segunda opção, por gostarmos mais da textura alcançada.
Gostaria ainda de referir que este post não pretende de forma alguma ser uma manancial de informação detalhada, mas sim uma simples e abrangente introdução à forma como pensámos este projecto desde o início. Espero que tenham paciência para o ler, e acima de tudo, que gostem do que leram e utilizem de alguma forma nas vossas criações. Então vamos lá a isto... respirem fundo:


Imagem 1

Imagem 2

Imagem 3

Imagem 4

Capítulo Um

Desenhar, desenhar, desenhar e no fim desenhar outra vez

O desenho é a forma mais simples, mais profunda e mais económica de ensaiarmos ideias, soluções e conceitos antes de pôr as mão à obra. Através do desenho conseguimos montar aos poucos uma imagem consistente e muito detalhada do que poderá ser o trabalho final. E o melhor de tudo, nem sequer é preciso dominar o desenho em termos técnicos. Para mim, mais do que o resultado final de um esboço ser mais ou menos atraente a um observador, o que me interessa é o acto mental que está por detrás desse gesto tão antigo como a nossa própria espécie (dizem que é a segunda actividade humana mais antiga... e provavelmente a segunda profissão mais antiga também). Muitos dos meus desenhos são difíceis de descodificar por alguém que não seja eu mesmo, mas para mim, escondem segredos que me iluminarão o caminho tortuoso e por vezes escuro como o breu, que é criar algo onde antes nada existia. Por isso, desenhem, desenhem muito mesmo. Desenhem nos transportes, desenhem enquanto falam ao telefone, desenhem no trono de loiça. Desenhem com as duas mãos, desenhem com tudo o que deixe um rasto numa superfície, desenhem na areia, desenham mentalmente ou no corpo de quem amam. Desenhem com o vosso corpo, Desenhem sem desenhar verdadeiramente. Façam tudo isto em qualquer superfície. Ou então num bloco de desenho. O VOSSO bloco de desenho, pessoal, intransmissível, único. O mais belo bloco de desenho do universo. E se sonharem com monstros, desenhem-nos tão ou mais horríveis do que são... depois pintem-lhes uma cuecas cor-de-rosa com flores vermelhas. Nunca mais vos assustarão de tão pequenos que ficam;
















Capítulo Dois

A Ideia... essa coisa misteriosa que parece ter origem divina (...)

(...) o que é uma grande treta. Para alguém exterior, parece que as nuvens cinzentas se abrem a um azul celestial... parece até que se ouvem trombetas angélicas, e uma mão divina nos toca a testa, enquanto estamos no banho ou sentados no trono de loiça. Nada mais errado, e uma ideia perigosa até, por muita gente acreditar nela. E quando acreditamos numa ideia destas, passam a haver dois tipos de pessoas... os criativos iluminados e os outros, não merecedores de tal benesse divina sabe-se lá porquê. Ao fim e ao cabo, se Fernando Pessoa afirmou que "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce", porque razão haveremos, nós meros mortais, de não acreditar nessa realidade divina?
Pois bem... a ideia vem essencialmente de três variáveis... uma paciência inabalável, uma teimosia mais férrea do que a mula de Sancho Pança e por fim... muito trabalho, que pode ser ou não visível aos olhos dos outros. É nesta interioridade que reside muitas vezes a ilusão da inspiração como algo exterior a nós. Ela vem de facto, como que um relâmpago estrondoso que tudo ilumina, mas resulta de uma tempestade cerebral que por vezes nos pode tirar o sono e a paz de espírito durante longos períodos.
E falando de paciência, se tiverem paciência e forem teimosos, a pouco e pouco, verão como que por magia surgir nos vossos desenhos relampejos do que poderá ser o vosso caminho criativo na resolução de um determinado problema, e toda a história que lhe está subjacente... no fundo, o argumento que no final musculará as vossas decisões e as consubstanciará na criação pretendida. Porque tudo no universo tem uma história, uma causa... desde um grão de areia até uma galáxia distante. No nosso caso, chegámos à intenção de criar um edifício tão alto e estreito quanto possível, do qual sairiam uma série de ramos de árvore, criando deste modo uma peça desconcertante, nuclearizando em si mesmo duas realidades distintas. Prevendo-se uma altura não menor do que 2.50,  precisávamos de criar uma estrutura interior para estabilizar uma peça tão alta e estreita e, simultaneamente que funcionasse como estrutura de suporte dos ramos . E tal como nós, com as (provavelmente poucas) certezas que conseguiram alcançar na fase de desenho, podem começar a meter a mão na massa. E não se se preocupem, no processo que vem a seguir há muito espaço para decisões;

Capítulo Três

Um esqueleto com ossos de madeira

A estrutura central, em madeira, foi feita a partir de uma base quadrada com um mínimo de lado que não pusesse em perigo a estabilidade do conjunto e um barrote com 40x60 mm de secção e uma altura de 2 metros, fixo através de peças metálicas. Após várias tentativas e erros, cheguei a uma medida de base de aproximadamente 30 cm de lado, o que me garantiria mais tarde um edifício elegante, esguio. Mais tarde, esta estrutura será furada para inserção dos ramos, e também para colocação da iluminação, mas essa é uma outra história contada no capítulo dezasseis.








Capítulo Quatro

Uma pele de cartão cinzento

Para a construção do edifício, utilizámos cartão cinzento com 1.5 mm. Mais fino e ficaria demasiado frágil, mais espesso seria muito difícil de manusear e dobrar. Como queríamos um edifício elegante, que fosse afunilando em altura, e ainda que a sua imagem fosse bastante torta, deformada e tosca - como que transparecendo uma construção tão antiga e desgastada como a própria humanidade - com os cartões formámos três caixas sem qualquer rigor geométrico que não o imbatível olhómetro lusitano. Estas caixas foram sofrendo múltiplas deformações e erosões sempre tendo como ponto de referência o eixo central, em torno do qual tudo se desenvolve. Se a coisa ficar muito feia - e vai ficar - não se preocupem... é sinal que ficará lindo.

















Capítulo Cinco

Um chapéu de cartão canelado vindo directamente de uma torradeira

Para a cobertura, terão que usar a vossa imaginação, visionando a construção planificada e, com paciência e muita imperfeição (Este esforço para tornar as coisas imperfeitas, para um gajo como eu que estudou arquitectura, é mais complicado do que parece) ir construindo aquilo que conceberam em desenho. O que será melhor? Um telhado de uma água? Duas águas? Quatro águas? ou plano? No nosso caso, queríamos perseguir uma imagem algo TimBurtiana e gótica q.b., e com uma clara hierarquização da fachada principal face às restantes. Assim sendo, optámos por duas águas bastante inclinadas, que convergem num crescendo para a fachada principal, criando deste modo uma imagem mais dramática do conjunto;





Capítulo Seis

Uma chaminé e uma mansarda para tornar as coisas mais complicadas

O mesmo esforço de visualização de uma estrutura planificada foi feito para a construção da mansarda, que reforça o carácter um pouco gótico que perseguimos para a forma da casa, e também para a chaminé, que quisemos proeminente e completamente desalinhada de qualquer elemento.  Uma vez mais, não se preocupem com as imperfeições... é sinal que estão no bom caminho. Aqui não há lugar para arquitecturas minimalistas (Siza Vieira... desculpa-me, mas a tua cena aqui não ficaria lá muito bem... fica para a próxima);









Capítulo Sete

Antes de mim coisa alguma foi criada
Excepto coisas eternas, e eterna eu duro
Trazei toda a esperança, ó vós que entrais! (*)

Resolvidos os problemas à altura das nuvens, chegou o momento de nos virarmos para o chão. Com um x-acto, abrimos na fachada principal uma porta esguia, tosca, desconcertante. Marcámos a importância desta entrada com a construção de um telheiro de lados triangulares.

(*) Vai-te lixar, ó Dante Alighieri... tu e o teu inferno, que aqui só entra amor e esperança. Tive por isso de alterar a tua famosa frase à entrada do teu inferno, para algo mais agradável.














Capítulo Oito

Mais uma porta... porque neste edifício todos vão querer entrar, e rapidamente

Quisemos também abrir uma porta lateral mais alta, acessível por uma escada que é um verdadeiro atentado à segurança pública de tão torta e perigosa que é. Com esta escada, criámos uma base visualmente mais marcante e articulada, e mais "agarrada" ao chão. Paralelamente, tudo fica com um ar mais familiar, aconchegante, que põe a descoberto afectos entre a vizinhança deste edifício muito sui generis;










Capítulo Nove

Quando se abrem duas portas, abrem-se um milhão de janelas

Chegou a hora de abrir janelas e portas em todas as fachadas do edifício. Confesso que esta fase nos provocou algum receio, mas depressa se desvaneceu. Assim que sentimos o prazer de tornar permeável à luz aquilo que antes era opaco, o difícil foi parar. Quisemos evitar a todo o custo qualquer regra que não fosse a ausência de regras. Nem no tamanho dos vãos, nem na posição, nem em qualquer outra característica. Pura aleatoriedade, com excepção de algum cuidado na posição dos vãos alinhados com a estrutura central, pois seriam estes - em teoria, já que na prática não foi bem assim, e ainda bem - a receber mais tarde os ramos nas quatro fachadas;






Capítulo Dez

Haverá amor sem uma varanda? Desde Romeu e Julieta que a resposta é um redondo NÃO!

Para articular um pouco as fachadas, quisemos adicionar duas varandas de esquina. Criámos assim um certo drama e articulação na forma geral do edifício, estimulando os observadores a olharem em volta do edifício. Quem não gosta de um pequeno-almoço numa bela varanda?






Capítulo Onze

Pai! Vês? Fiz bem em ser ilustrador e não electricista como tu querias...
olha para mim cheio de papel!

Chegou a hora do papel maché. E se o processo em si é simples, a tarefa revelou-se extenuante, peganhenta, por vezes até irritante. Mas vermos aos poucos aquilo que antes mais não era do que uma tempestade cerebral e alguns rabiscos num Moleskine, é simplesmente maravilhoso. E foi a isso que nos agarrámos nos momentos em que já nos estávamos a passar com tanta cola nos dedos, no chão e em algumas partes do corpo que não apanham lá muito sol.

E quanto ao processo? Nada mais simples: Cola branca ligeiramente diluída, e muitas... muitas mesmo... tiras de papel, coladas na vertical e na horizontal (para uma maior resistência do conjunto), intencionalmente mal implantadas para uma imagem mais rica em termos de texturas, e totalmente ensopadas pela cola, o que resultará numa superfície brilhante e muito resistente ao tempo. Uma curiosidade... como queríamos que a pintura da peça final não tapasse completamente o papel por baixo, escolhemos dois livros que tínhamos cá por casa, com uma cor de página amarelada que sabíamos, iria enriquecer o edifício: o grande "Viagens Na minha terra" de Almeida Garrett (por termos dois, há muito que utilizamos ás páginas deste exemplar para os trabalhos de ilustração... sim... eu sei.... um pecado), e com uma ironia intencional, o livro "Os médicos malditos" de Christian Bernadac, que relata experiências médicas em seres humanos nos campos de concentração nazis... um livro que me chocou tanto há uns anos atrás, quando o li, que decidi utilizá-lo neste trabalho, convertendo uma carga brutalmente negativa em algo tão positivo como uma Árvore do Amor. De chumbo para ouro. Que me desculpem os amantes dos livros (nos quais me incluo com todas as minhas fibras), mas não resisti à magia desta alquimia inesperada.














Capítulo Doze

Com as cores de um arco-íris, talvez até mais

Após um milhão de horas a colar pedaços de livros, e de já não sentir as mãos de tantas camadas de cola na ponta dos dedos (e é tão bom retirá-los... é bom para os nervos ver grandes películas de cola a saírem dos dedos... experimentem... melhor do que explodir bolhas em plásticos de protecção ou fazer ponto-de-cruz), chegou a hora de pintar a peça. Primeiro de branco, com um primário propositadamente mal aplicado para não tapar completamente o que estava por baixo, depois as janelas, com muitas cores contrastantes. Este é um prédio onde vive um povo que se ama, se tolera e respeita mutuamente. Um mundo em miniatura onde as cores das janelas procuram exacerbar o multiculturalismo e a multirracialidade, enquanto verdadeira riqueza de uma qualquer comunidade. No fundo, foram as diferenças e a miscigenação que nos tornaram uma espécie tão resiliente, forte e adaptável e acima de tudo, tão rica. É pena, nos dias de hoje, haver ainda tantos seres humanos e defenderem exactamente o contrário. History repeats itself.











Capítulo Treze

As telhas! As telhas!...

... teria dito Joseph Conrad, se em vez de escrever o magnífico "No Coração das Trevas" tivesse feito uma coisa destas. E ainda bem que não lhe passou uma ideia parva dessas pela cabeça. Telhas por todo o lado. Pequenas placas de cartão canelado, com um dos lados arredondado como se fossem escamas, e previamente pintadas (as telhas que confrontaram com os limites das coberturas, evitando deste modo que uma pintura posterior com vermelho sujasse as paredes já pintadas). No final, pintámos com um pouco de preto sobre o vermelho, para escurecer envelhecer um pouco as telhas.




Capítulo Quatorze

E de novo se fez o velho

Este é um edifício tão antigo quanto o próprio Amor... desde tempos imemoráveis que as suas paredes resistem inabaláveis aos elementos e aos obstáculo, e a todas as forças que se unem para o derrubar. 

Porque o Amor vence tudo.

Um verniz mate com velatura de carvalho tratou de envelhecer e proteger a construção, mas podia também ter sido com betume judaico. As irregularidades próprias do papel maché tornam-se belas com esta patine;







Capítulo Quinze

Dizem por aí que o diabo mora nos pormenores...

... mas é também nos pormenores que reside a magia de qualquer trabalho, o que o torna único e irrepetível. Os últimos dias foram dedicados ao culto da picuinhice: Placas com nomes de rua, guardas de varanda em arame soldado, retoques aqui e ali, um número de porta que é um 8 (mas também podia ser o infinito vertical), alguns estendais e uma nuvem capturada por um condómino do último piso, para regar as plantas.



Capítulo Dezasseis

Com o coração nas mãos, deixei de ter mãos disponíveis para tirar fotografias

A partir daqui, como fim do prazo para terminar este projecto foi se aproximando cada vez mais rápido, não consegui tirar mais fotografias por falta de tempo. Contudo, o último dia foi passado em duas tarefas importantes:

a) Uma primeira, onde ensaiámos as posições dos ramos nas quatro fachadas, tendo em atenção o equilíbrio, a harmonia e a beleza do conjunto. Estas posições dariam origem a marcações no eixo central de madeira - feitas com uma vara suja de tinta na ponta -  que serviram como pontos de referência para fazer os respectivos buracos com uma broca de 20 mm. 

b) A tornar os ramos que cortámos de um arbusto selvagem (o qual penso que até agradeceu a poda inesperada) mais belos e mágicos do que já eram, pintando-os, forrando-os com lã de várias cores e pendurando-lhes guizos, corações e estrelas feitas em massa.



Capítulo Final

Um orgasmo

Se tivesse que descrever todo o processo, e o final, numa só palavra, seria essa mesmo... um orgasmo.  Não o sexual, apesar do aspecto fálico do edifício. Falo de um orgasmo, num sentido mais.... esqueçam... não vou conseguir explicar. E como qualquer orgasmo que se preze... é um momento espectacular, mas a viagem ainda o é mais. E aqui, é mesmo a viagem que nos deu um prazer imenso. 

O resultado, esse é apenas uma consequência. Nada mais. Nada menos. A viagem... essa sim é o que nos interessa. E esta foi uma viagem e tanto.


Quanto ao resultado...



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